O desafio de transformar uma história em filme mobilizou uma rede de colaboração em Colatina. A gravação da ficção “O Último Trem”, que tem roteiro, produção e direção de Fabrício Bertoni, envolveu artistas, produtores, estudantes e pequenos empreendedores da cidade. Ao retornar das oficinas audiovisuais do Curta Vitória a Minas II, um dos primeiros movimentos de pré-produção do diretor para realização do curta-metragem foi a parceria com a Companhia de Teatro Art Manha, coordenada pelo ator Kaio Henrique, de 28 anos.
Criada em 2014, a companhia nasceu do desejo de levar espetáculos de teatro para bairros sem acesso a arte e a cultura. Especializado no gênero infantil, o grupo monta dramaturgias com temáticas pedagógicas e educativas como a conscientização ambiental, o trabalho em equipe, o respeito aos pais e a relação casa e escola. Atualmente, o Art Manha é composto por duas atrizes, um ator, uma sonoplasta e uma contra-regra. Na primeira edição do projeto, a companhia integrou o elenco do curta-metragem “O Som do Silêncio”, de Juliana Brêda, que teve a história selecionada em 2014. Desta vez, o grupo teatral participou da seleção da atriz e dos dois atores mirins e deu apoio às atividades de pré-produção e produção da nova ficção.
“É uma experiência muito construtiva porque saímos do universo teatral que é uma caixa preta, aquela caixa fechada, e vamos para a rua. Com isso, acabamos ganhando um contato maior e uma experiência maior com pessoas mais alavancadas dentro do ambiente cinematográfico. É uma oportunidade muito boa que acaba contemplando o nosso currículo enquanto artista do interior do estado que não tem muito esse contato, que não tem muito essa visibilidade. É uma oportunidade e tanto pra gente! Agrega muito pra companhia e até mesmo para o nosso conhecimento pessoal”, avalia Kaio, que é formado em Serviço Social e está cursando Licenciatura em Teatro.
A primeira atuação
A musicoterapêuta e contadora de história Márcia Strey interpretou a mãe dos dois meninos que vendem cocada na estação para ajudar no sustento da família. Nascida em Vila Valério, no noroeste capixaba, ela mora em Colatina desde os nove anos de idade. Há 18 anos coordena a Escola Art’ Vida voltada para formação nas áreas do balé, jazz, ginástica rítmica e música. “Essa é a minha primeira experiência de filmagem. Só de ver o roteiro fiquei emocionada de imaginar a situação desta mãe. Aceitei o convite achando que era uma coisa, mas é muito maior do que eu imaginava. Quando vi o tamanho do desafio fiquei feliz de ser lembrada e com esperança de que dê certo”, contou antes das gravações.
Embora nunca tenha atuado no teatro, no cinema e na televisão, Márcia criou uma performance concentrada e delicada. “Eu achei incrível participar da filmagem, apesar de ter sido bem cansativo. Não sabia como se fazia um filme e eu pude ter a noção. Agradeço mesmo a oportunidade de ter feito parte desta experiência”, destaca Márcia, que além de atuar, cedeu o espaço da escola de arte para a gravação de parte das cenas.
O estudante do quarto ano do ensino fundamental Lucas Andrade Nunes Borghi, de dez anos, topou a missão de interpretar um dos meninos vendedores de cocada da estação. Nem o sol quente e o calor intenso, nem as longas horas no set de filmagem, desanimaram o jovem ator estreante. “Nunca participei de um filme. Eu não imaginava que era assim. Gostei da história, achei as gravações legais e a parte que mais gostei foi a cena da cocada”, conta Lucas.
Davi Lopes Légora, de 12 anos, estudante do sétimo ano do ensino fundamental, adorou atuar e participar da gravação de uma história pela primeira vez. “Estou conhecendo novas pessoas, novos amigos. O que eu achei mais interessante foi a hora em que eu e o meu parceiro Lucas fomos vender cocada. A gente gritava: olha a cocada, olha a cocada, e tinha outras pessoas que não faziam parte do filme que, quando paramos de gravar, falaram se a gente queria vender cocada pra eles”, brinca. Para Davi um dos maiores desafios da atuação é a memorização do texto. “O mais difícil é decorar. Tem que decorar. Às vezes, você vai errando, mas vai repetindo, vai lembrando”, analisa o estudante.
Apoio em Itapina
A bela e sossegada Itapina foi escolhida como cenário para a história ambientada nos anos 70. No processo de montagem, a reconstituição de época será feita através de fotos antigas com técnicas de animação.
Dona Fia, como é conhecida Irani Manfre, abriu as portas da sua casa de arquitetura antiga, localizada na entrada do vilarejo, para gravação das cenas principais do curta-metragem. Anexo à residência um cômodo desativado equipado com um fogão de lenha foi a ambientação adequada para gravação da história. Para compor a cozinha, vários objetos de cena, como o rádio antigo e o ferro de passar a carvão, vieram do antiquário montado pelo empresário Beto Rosalém nas dependências da Pastelaria Califórnia, em Ibiraçu. Dona Fia também emprestou seu acervo de objetos antigos para completar a composição artística de época. O preparo da cocada, deixando-a quase no ponto de corte para a gravação ficou aos cuidados da cozinheira Gizeli Dias e de sua filha, Mayra Dias, moradoras de Itapina. “Quando eu era criança vendia frutas na estação durante a parada do trem. As pessoas que passavam encomendavam manga. Se não fosse época de manga, a gente vendia laranja ou água”, relembra Gizeli, como se estivesse voltando ao passado.
Valorização
O diretor, produtor e roteirista, André da Costa Pinto, responsável por idealizar e ministrar vários processos de formação audiovisual pelo Brasil com o objetivo de revelar novos realizadores, acompanhou a produção e a gravação da ficção em Colatina. Segundo o cineasta, o projeto oportuniza ao selecionado a chance de criar um roteiro, produzir e gravar um filme, mas também envolve todo esse entorno de pessoas que participam e se beneficiam desta experiência, apontando novos horizontes de conhecimento e de aprendizado. Todo esse empenho colaborativo da comunidade contribui para a valorização e o fortalecimento do território.
“Ser solidária é o papel da arte. A arte, principalmente, no país em que vivemos, que é tão marginalizada em determinados pontos, exige a todo momento que a comunidade dê as mãos para criar esta corrente solidária e atender a necessidade e a fome das pessoas de verem a arte acontecer, principalmente, nestas localidades. Essa rede começa dentro deste terreno solidário e, pouco a pouco, vai educando as pessoas para enxergarem a arte como profissão. Assim, vamos criando um mercado, mostrando que o artista também é um trabalhador como qualquer outro e precisa de reconhecimento”, analisa o cineasta, premiado em festivais nacional e internacionais. André iniciou a carreira a partir da participação em um projeto de inclusão e formação audiovisual ao ser selecionado pela segunda edição do Revelando os Brasis, realizado pelo Instituto Marlin Azul.
O envolvimento comunitário e a articulação em rede contribuíram para transformar o sonho de fazer um curta em uma realidade. “Eu estava muito ansioso e achei que não fosse dar tempo de fazer todas as coisas. A equipe foi me auxiliando, melhoramos o roteiro e eu fui ficando cada vez mais confiante. Quero agradecer a equipe do Instituto que me ajudou muito e quero agradecer às pessoas da cidade que me ajudaram a construir esse filme”, destaca Fabrício.
Texto: Simony Leite Siqueira
Fotos: Gustavo Louzada