Elis nunca se cansou de ouvir as histórias em quadrinhos contadas pela mãe. A pequena ainda não sabia ler e caçava revistinhas como quem procura uma nova brincadeira. Certa vez, a mãe tão ocupada de tantos afazeres domésticos lançou o desafio para a filha: “Vamos fazer o seguinte: você vai juntar, pega os pedacinhos das letras e junte”. Assim, aos quatro anos, Elis aprendeu a ler em casa. Ao acessar o universo da escola, o gosto pela leitura se conectou com o amor pela escrita, um alimentando o outro, como fogo e ar, abrindo-lhe infinitas janelas para o conhecimento e a imaginação.
Quarenta e três anos depois, Elisangela Bello buscou nas memórias de infância a inspiração para transformar em curta-metragem a história “Lia: Entre o Rio e a Ferrovia”, selecionada pelo Curta Vitória a Minas II. As gravações começaram na quarta-feira (22/03) e terminaram nesta sexta-feira (24/03), em Aimorés (MG).
Formada em jornalismo e pedagogia, a educadora e comunicadora convidou mulheres muito especiais para fazerem parte do filme sobre a menina apaixonada por aprender e apreender o mundo através das histórias. Oito professoras ganharam uma tarefa diferente: participar de uma cena de ficção para o cinema. Nesta cena, a protagonista na idade adolescente sonha com uma ciranda formada no meio do pátio da escola pelas educadoras. No rodopiar desta roda, uma a uma entrega sua maior virtude como mestra para a aluna. O convite aqueceu o coração das aposentadas, ao mesmo tempo, trouxe um alvoroço misturado com ansiedade frente ao desconhecido.
Admiração
A cena das educadoras foi gravada no pátio do antigo Colégio Nossa Senhora do Carmo, aonde a orientadora educacional, Regina Celi Ton Fialho, de 74 anos, aposentada há 20 anos, estudou dos 11 aos 17 anos e cursou o magistério. “A gravação foi um dia muito especial porque estudei e, depois, trabalhei nesta escola com todas aquelas professoras que estavam participando da gravação. Não foi tão fácil filmar, mas as meninas foram muito compreensivas e pacientes conosco. Foi mais uma diversão, uma coisa inesperada. Ninguém imaginou que nós, neste momento da vida, íamos estar num filme. Então, ficamos muito agradecidas a Deus”, relata Regina que conheceu Elisangela quando a menina tinha 13 anos, na Escola Polivalente, em Baixo Guandu (ES). “Elisangela é uma pessoa marcante, como essas pessoas que chegam e você sabe que vão ter um futuro maravilhoso. Muito estudiosa, séria e compenetrada. Ela tinha certeza do que queria e sabia que precisava vencer”, destaca Regina.
Os pais de Elisangela sempre a incentivaram a estudar. Os dois não tiveram a mesma oportunidade de uma relação tão intensa com a escola. Seu pai foi alfabetizado aos 18 anos e estudou até o sétimo ano, mas, não completou o ensino fundamental porque precisava viajar para trabalhar. Sua mãe completou o ensino fundamental, porém, não avançou para o ensino médio para se dedicar ao casamento.
A professora Regina sente-se feliz por ser lembrada e respeitada pela missão assumida desde a juventude. Segundo ela, o magistério era o destino das meninas numa época de pouco ou nenhum acesso das mulheres a outras áreas profissionais. “Nós lá em casa éramos de uma família italiana e meu pai dizia, ou era professora, ou era professora. Mas foi uma escolha acertadíssima, uma coisa que me fez muito feliz. É uma profissão que te abre o leque para conhecer e entrar na vida de muitas pessoas. E isso faz uma diferença muito grande na trajetória destes estudantes”, relata Regina que, aos 18 anos, fez parte da segunda turma de pedagogia de Colatina, num período em que algumas pessoas do lugar onde morava consideravam inadequada uma moça sair de Aimorés para cursar faculdade em uma outra cidade.
Acolhimento
Antônia Damaris Nogueira Vicente completará 80 anos em 2023. Tinha nove anos de idade quando saiu com a família de Triunfo, em Pernambuco, para viver em Aimorés, Minas Gerais. Formou-se professora no ano de 1963 e dedicou grande parte da carreira ao trabalho de alfabetização. Durante os ensaios da cena, ela assumiu o papel da educadora cujo exemplo de vida se reflete como em um espelho, dando coragem ao aluno para seguir em frente.
“A alfabetizadora é aquela que faz esse contato com a criança que chega depois de sair do colo da mamãe. Os alunos chegam em sala de aula muitos assustados. Eu tinha que ter a maior paciência e carinho para que eles não se sentissem como se tivessem sido abandonados pelos pais. Esse foi um trabalho que fui adquirindo experiência pouco a pouco. A professora de alfabetização é aquela que acolhe e pode deixar boas impressões e bons reflexos para o aluno”, destaca a professora aposentada há 36 anos. Para Damaris, gravar não foi complicado, trouxe uma experiência para todas as professoras e ainda rendeu momentos muito divertidos mesmo com o cansaço do set de filmagem.
Reencontro
Aposentada há 13 anos, Aguida Lúcia Ton Araújo, 73 anos, trabalhou como professora e supervisora. O convite de participar do filme a emocionou porque reuniu professoras marcantes da história da educação em Aimorés (MG) e Baixo Guandu (ES).
“Quando nos reunimos pela primeira vez, foi muito bom, a gente pôde rever as colegas de trabalho, relembrar um pouco a nossa história. Fiquei ainda maravilhada ao ouvir a história da Elis, como é bem escrita. Os ensaios foram super divertidos porque ela fazia questão dos detalhes, de completar o texto. Elis viveu e nós aprendemos a viver o texto junto com ela. No dia da gravação foi especial, a preparação das roupas, da beleza, fazendo unha, cabelo, como se nós fôssemos artistas de verdade mesmo”, conta Aguida.
As professoras acordaram antes do amanhecer para as filmagens. A intenção era aproveitar os primeiros raios do sol para iluminar a cena no pátio da escola. Quebrar a rotina para uma tarefa tão nova gerou um pouco de cansaço, mas, não derrubou o entusiasmo das professoras. “Eu cansei muito nas gravações mas faria tudo de novo porque amei. A equipe é sensacional, competente e nos deixou à vontade porque tivemos que repetir várias vezes devido a nossa falta de experiência, mas foi maravilhoso. A equipe nos fez sentir muito melhor porque estávamos ansiosas”, relata Aguida.
Quem também participou do curta-metragem foi a professora Gilmar Garcia Rosa Warol. Iniciou a carreira no magistério aos 19 anos. Dedicou-se à formação de educadoras, à supervisão escolar e ao trabalho dentro das classes de letramento e alfabetização. A grande paixão pelas artes a fez dedicar ainda um tempo ao ensino da pintura. Depois de trabalhar em escolas públicas, no ano de 1995, fundou o Centro Educacional Crescer dentro do qual há 28 anos exerce a função de gestora pedagógica. A instituição voltada para a nova pedagogia da literatura atende desde a educação infantil ao 9º ano do Ensino Fundamental II.
“Participar de uma nova experiência é sempre ganhar conhecimento, porém, com uma certa ansiedade em lidar no campo desconhecido. Mas foi muito gratificante. Elisangela é uma especialista em produzir textos e sabe muito bem encantar com as palavras. Leitora assídua desde cedo, sua exímia bagagem na área da comunicação faz uma diferença por onde ela atua”, destaca a professora de 76 anos.
A cena em homenagem às educadoras envolveu as professoras Aguida Lúcia Ton Araújo, Antônia Damaris Nogueira Vicente, Denir Pereira Dias, Edithe Sobrinho Dias, Gilmar Garcia Rosa Warol, Nacira Caxias Cândida, Regina Celi Ton Fialho e Rosângela Iglesias. A professora Rosângela teve uma história selecionada na primeira edição do Curta Vitória a Minas, em 2014. Na época, através do projeto, ela transformou em filme a história “Uma Estranha Criatura”, baseada em causos sobrenaturais contados pelo pai ferroviário.
A escola desempenhou papel fundamental na formação cultural da autora. A biblioteca do Polivante, em Guandu, era o seu lugar preferido na adolescência. Neste espaço de carpete verde se entregava aos diferentes tipos de livros e de texto e ainda podia ler os jornais numa época em que os periódicos não ficavam disponibilizados em outros pontos da cidade. “O gosto pelas histórias contadas e transcritas veio comigo através da escola, da cultura escolar e de bons professores que nos incentivavam muito e, talvez, nem tivessem ideia do quanto isso era presente pra algumas pessoas, do quanto nos transportava pra realidades que não eram acessíveis pela vida que a gente levava”, conta Elisangela.
“Lia: Entre o Rio e a Ferrovia” resgata diferentes memórias como um poema visual. São recordações da relação da autora com a cultura escolar, os livros e a família num tempo de vida simples e tranquila de um interior conectado à natureza e de uma cidade sempre interligada à ferrovia. A história é contada em três fases de vida da protagonista, ainda menina, jovem e adulta. Para interpretar cada uma destas etapas, a diretora convidou as atrizes Ana Lara Lenk, Melina Lenk e Tânia Maria Tabosa. O papel da sua mãe ganhou vida através da atriz Tânia Reis.
O elenco contou ainda com a atuação de outra turma animada. Participaram das cenas as crianças Ana Lara Lenk Freitas, Levi Cardoso Rocha, Bianca Segades Palcich Ferreira, Valencina Lourenço Maciel, Daniel Oliveira Aguiar, Ana Paula Cunha Tavares Ruela, Antonella Afoumado Castro de Sousa, Marina Silva Bosetti, Lara Fonseca Amaral Cardoso, Cecília Metzker Guzanshe e Nina Maria Bello Barcellos. O set contou com a ajuda da professora Magaly Cruz Serrano e da estudante Lívia Condé Bohrer Binda no acompanhamento dos estudantes durante a gravação.
Texto: Simony Leite Siqueira
Fotos: Gustavo Louzada, Patricia Cortes e Beatriz Lindenberg